• André Jorge de Oliveira
Atualizado em
 (Foto: Tomás Arthuzzi)

(Foto: Tomás Arthuzzi)

Faltavam dois dias para uma entrevista de emprego e Fernanda estava nervosa, como sempre. Quando chegasse o momento, tinha de haver como aliviar o frio na barriga. Foi então que a estudante de marketing, de 21 anos, esbarrou no segundo vídeo mais assistido do canal de palestras TED Talks. A apresentação promete informar como a linguagem corporal pode “moldar a personalidade”.

O título chamativo e as dezenas de milhões de visualizações chamaram a atenção da moça. Quem deu a palestra, em 2012, foi a psicóloga Amy Cuddy, da renomada Universidade Harvard. Ela usou seus 20 minutos de fama para contar ao mundo um truque simples, mas supostamente poderoso. Explicou como alterar índices hormonais ficando parado em certas “poses de poder”. Manter as mãos na cintura aumentaria a testosterona e diminuiria a cortisona. Resultado: mais confiança e menos insegurança.

O conselho baseia-se em uma pesquisa de 2010, de Cuddy e dois colegas, citada mais de 450 vezes em artigos científicos. “A palestrante parecia tão certa do que falava”, conta Fernanda (ela não quis ser identificada com sobrenome na reportagem), que viu no conteúdo uma solução para seus problemas. “Resolvi tentar, mas não sei se adiantou muito.”

Parece que não: a estudante sobreviveu à entrevista, mas não conseguiu o emprego. E, hoje, já sabe que a “pose de poder” não é uma teoria sólida — e sim uma balela bem contada. O estudo por trás da ideia foi desbancado em 2015, graças a uma reprodução com 200 participantes. Só que, antes disso, influenciou milhões de pessoas como Fernanda mundo afora.

Ao saber dos resultados, a coautora Dana Carney publicou um comunicado dizendo não acreditar mais na própria pesquisa. Disse que seria “perda de tempo” continuar estudando o fenômeno. Postura exemplar, já que estar apto a reconhecer novas evidências e a voltar atrás quando necessário é o mínimo que se espera de um cientista sério.

Mas isso começou a se tornar rotina e um número grande de estudos psicológicos bem estabelecidos foi derrubado nos últimos anos. Tamanha fragilidade só pode significar uma coisa: algo na área não está funcionando direito.

 (Foto: Tomás Arthuzzi)

(Foto: Tomás Arthuzzi)

EFEITO DOMINÓ
Liderado por Brian Nosek, psicólogo da Universidade de Virgínia, o grupo  Reproducibility Project (Projeto da Reprodutibilidade) selecionou cem experimentos de psicologia social e cognitiva para reproduzi-los. O projeto, que durou de 2012 a 2015, refazia os passos das pesquisas e conferia se as conclusões originais batiam com as novas.

O mecanismo torna o conhecimento científico mais confiável. “Foi o primeiro estudo sistemático para investigar reproduções”, diz Nosek. “Consultamos os autores para saber como realizar os experimentos.” E as conclusões foram alarmantes: só 36% dos testes obtiveram os mesmos efeitos dos originais. Quando o projeto veio à tona, as críticas voaram. “Obtivemos muita atenção, negativa e positiva. Ficamos felizes, foi sinal de que nossos colegas levam a questão a sério.”

Outro queridinho da autoajuda se mostrou incorreto quando replicado em 2016. O estudo de 1988, da Universidade de Mannheim, Alemanha, mostrou que sorrir, mesmo sem vontade, melhorava o humor. Foi citado quase 1,5 mil vezes. Mas a ideia caiu por terra: a reprodução não obteve resultados significativos para considerar o efeito real. Replicaram o estudo 17 laboratórios, com mais de 1,8 mil voluntários envolvidos.

Mesmo destino teve uma das pesquisas mais populares da psicologia moderna. Em 1998, os psicólogos Roy Baumeister e Dianne Tice conduziram um experimento que mudou a forma pela qual muitas pessoas enxergavam a autodisciplina. Voluntários tinham de encarar um prato cheio de rabanetes e outro, de biscoitos. Uma parcela deles podia retirar apenas rabanetes; a outra, só biscoitos.

Após o lanche, cada pessoa resolvia um quebra-cabeça impossível de solucionar. Os pesquisadores cronometraram o tempo gasto por cada um na tarefa — e descobriram algo. Quem se esbaldou com cookies insistiu no enigma por quase três vezes mais tempo do que os que não podiam comer a guloseima.

Os cientistas concluíram que a força de vontade é limitada, como se tivéssemos um número de pontos para gastar em tarefas difíceis: dizer não a apetitosos cookies e sim a insossos rabanetes custa muitos pontos. Então, faltaria vontade de queimar os neurônios com a tarefa.
O estudo, citado mais de 3 mil vezes em textos acadêmicos, rendeu teorias e um livro, escrito pelo próprio Baumeister, que também palestrou no TED.

A ideia ficou tão pop que foi parar na Casa Branca: o ex--presidente Barack Obama parou de escolher ternos para não desperdiçar os seus “pontos” em decisões triviais.

Quase 18 anos depois, porém, uma replicação em 23 laboratórios mostrou que os resultados não eram relevantes para serem considerados reais. Alguns dos atingidos pelas reproduções de Nosek argumentaram que ele não seguiu à risca as condições dos experimentos.

Só que houve casos em que outros laboratórios também tentaram, sem sucesso, realizar a reprodução. O debate plantou uma pulga atrás da orelha dos que atuam na área. Pesquisas que eram referência, de uma hora para outra, caíram em descrédito. Como pode?

 (Foto: Tomás Arthuzzi)

(Foto: Tomás Arthuzzi)

JEITINHO ESTATÍSTICO
Na maioria dos casos, não se trata de fraude científica. “Não replicar um resultado não quer dizer que o pesquisador original falsificou dados”, diz Angelo Sampaio, psicólogo social. “São deslizes estatísticos”, diz o professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Ou seja, quando um cientista só vê números, pode esquecer a relevância que a pesquisa tem na vida das pessoas.

Um índice muito usado para a aprovação de artigos científicos é o “valor de p”. Ele mede a chance de o efeito estudado ter ocorrido de forma aleatória, sem relação com a causa proposta pelo pesquisador. Quando o valor de p é muito alto, os resultados encontrados pelo cientistas poderiam ter sido achados em qualquer situação — o que pode arruinar o trabalho. É por isso que muitas publicações só aceitam estudos com valor de p abaixo de 5%.

E é aqui que muitos abusam de um “jeitinho estatístico”: fazem vários testes até alcançar o número de voluntários adequado para se chegar ao índice de p necessário. Não é ilegal, mas o truque impede uma visão clara dos resultados e compromete o rigor das pesquisas. “Você pode ter um resultado significativo em termos psicológicos, mas que não é estatisticamente forte”, diz Sampaio. “Às vezes, estudos desse tipo são preteridos em relação a outros com índice maior.”

Além da estatística, há o fator surpresa. Devido à repercussão que podem trazer, estudos inusitados são os queridinhos dos periódicos psicológicos. E eles atingem em cheio um mercado que movimenta US$ 10 bilhões por ano nos Estados Unidos.

Divulgadores de autoajuda são doidinhos por essas pesquisas. “Esses mentores usam estudos de um jeito arbitrário, são displicentes com os resultados e suas implicações”, afirma Steve Salerno, jornalista americano que investigou o mercado de autoajuda em seu livro Sham: How the Self-Help Movement Made America Helpless (Farsa: Como o Movimento da Autoajuda Deixou a América Desamparada, em tradução livre), sem edição no Brasil.

Certos gurus se apropriam da credibilidade da ciência para vender ideias descabidas. Vera Rita Ferreira, doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, explica o apelo da autoajuda. “Temos tendência fortíssima a poupar energia e a maioria dessas publicações diz que podemos conquistar grandes coisas com pouco trabalho.”

A ideia de que bastaria colocar as mãos na cintura e encenar uma pose de poder para conquistar uma vida mais autoconfiante, por exemplo, é um prato cheio para esse tipo de mercado. “Mas não é que autoajuda signifique publicação de má qualidade: algumas podem realmente estimular o desenvolvimento pessoal”, pondera Ferreira.

Mesmo com a descrença, estudos importantes resistiram às reproduções. Brian Nosek e equipe comprovaram que ser justo traz mais felicidade do que ser rico e que pessoas carinhosas com seus amantes realmente sentem-se mais amadas.

Muitos enxergam o movimento de reproduções como um passo para reconstruir a área. “O projeto é um ponto de partida para melhorarmos a pesquisa psicológica e científica como um todo”, explica Nosek. “Várias soluções para o problema já começaram com ele.” Milhões de Fernandas apreensivas com entrevistas de emprego agradecem essa dose extra de rigor.

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