Cultura

Crise econômica e desemprego viram enredo da literatura brasileira

Crise econômica e desemprego viram enredo da literatura brasileira

Novos romances de Julia Wähmann e Marcelo Ferroni enfrentam os infortúnios do desemprego com boas doses de ironia e humor

RUAN DE SOUSA GABRIEL
23/02/2018 - 06h01 - Atualizado 23/02/2018 17h42

O que fazer quando a moça dos Recursos Humanos (RH) convoca uma reunião e, com voz macia e elogios a seu trabalho, diz “é a crise, você sabe”, recomendando que você acomode anos de dedicação à empresa em duas caixas de papelão e dê o fora? Alguns choram, outros fazem contas em desespero. Há os que escrevem longos e-mails de despedida aos colegas que permanecem empregados, os que maldizem a propriedade privada dos meios de produção e os que aproveitam para bater ponto no bar mais próximo. Ler um romance ou dois é outra opção para quem, para o bem e para o mal, não precisa mais se submeter a um cartão de ponto. Quando for necessário enfrentar as filas da Caixa Econômica Federal para reclamar o seguro-desemprego e o saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), é aconselhável ter um livro à mão. Nos últimos meses, aportaram nas livrarias dois romances que podem ser boa companhia para desempregados enfileirados. Manual da demissão (Record, 144 páginas, R$ 32,90), da carioca Julia Wähmann, e O fogo na floresta (Companhia das Letras, 304 páginas, R$ 44,90), de Marcelo Ferroni, paulistano radicado no Rio de Janeiro, retratam com um humor ferino e debochado as agruras de quem perdeu o emprego na recessão. A crise sem precedentes que tirou o trabalho de milhões de brasileiros nos últimos anos e fez estragos no mercado editorial, com encolhimento de 23% nas vendas entre 2014 e 2016,  agora sustenta o enredo de romances.

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ESTÃO CONTRATANDO? Desocupados preenchem fichas para emprego temporário de Natal na loja de departamentos Mesbla. Rio de Janeiro, 1983. Desemprego como narrativa (Foto: Wilson Alves / Agência O Globo)

Tanto Manual da demissão, recém-lançado, quanto O fogo na floresta, publicado no final do ano passado, narram os infortúnios de duas cariocas que perdem o emprego no mercado editorial. J., a narradora de Manual da demissão, nunca nomeia a empresa onde trabalhava, mas, pelas descrições, percebe-se que era uma editora de livros. Heloísa Peinado, a protagonista de O fogo na floresta – o romance é narrado em terceira pessoa –, perde o emprego no Grupo Editorial Guanabara, que publica livros e revistas. Os dois autores conhecem bem esse mercado. Wähmann trabalhou numa editora até 2015 e criou o Garimpo Clube do Livro, que envia obras escolhidas por curadores aos assinantes. Ferroni é um romancista premiado e editor no Grupo Companhia das Letras. Apesar das premissas semelhantes, as protagonistas de Wähmann e Ferroni reagem de maneiras bem diferentes ao término de seus vínculos empregatícios. J. vive o luto e se transforma numa espécie de guru para todos os seus amigos desocupados. Heloísa prefere se imaginar em busca de “novos desafios” e “projetos”.

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Um dos “desafios” que os recém-desempregados costumam enfrentar são as filas: fila para fazer o exame demissional, fila para homologar a demissão no sindicato da categoria, fila para sacar o FGTS. Quando passou a frequentar essas filas, Wähmann começou a publicar pequenos depoimentos irônicos no Facebook sobre as burocracias do desemprego. “O patrão ficou maluco mesmo – piada ruim pra segunda-feira mais triste do mundo”, escreveu ao anunciar sua demissão em setembro de 2015. Numa terça-feira de novembro, em três posts, ela narrou uma tarde de agonia na Caixa Econômica em busca do FGTS. “Podia ter um serviço de manicure na espera da Caixa. Qualquer coisa que não desse essa solidão toda e esse torcicolo, que no fundo são a mesma coisa”, escreveu. Lucia Riff, a agente literária de Wähmann, e Carlos Andreazza, editor da Record, perceberam que aqueles posts podiam se desdobrar num romance agridoce sobre a multiplicação dos desocupados. “Eles me falaram: ‘Olha, Julia, seus relatos e observações são dolorosos, mas também muito engraçados. Talvez seja um caminho a explorar’”, disse Wähmann em entrevista a ÉPOCA. Ela já havia anunciado a seus amigos virtuais que seu próximo livro seria “uma autoajuda autobiográfica chamada Manual da demissão (...) inspirado nos manuais de etiqueta clássicos”. O livro daria lições de dignidade aos demitidos, de solidariedade à classe desempregada e de boas maneiras aos patrões. “Vai ter aquele acabamento tosco para baratear o preço final, já que é voltado para desempregados e sobreviventes”, publicou.

"O escritor israelense Etgar Keret diz que o humor (na desgraça) é como uma luva que nos permite tocar uma panela quente sem nos queimar"
Julia Wähmann, escritora

O livro que Wähmann de fato escreveu é um pouco diferente. No intervalo de dois dias, J. perde o namorado e o emprego. O namorado vai para Portugal e a moça do RH a dispensa com o clássico “você sabe, é a crise”. Na companhia dos outros demitidos, J. tenta lidar com “essa tal liberdade”, para citar um pagode do Só Pra Contrariar incluído na ótima e eclética playlist que encerra o livro. Todos os amigos demitidos de J. são chamados por iniciais que seguem a ordem alfabética: A., B., C., D., E., F. Se para os patrões eles eram números que precisavam ser reduzidos para manter os lucros durante a crise, no romance eles são promovidos a letras. Todos estocam no apartamento de J. as caixas de papelão com toda a tralha acumulada nos anos de escritório. Juntos, eles enfrentam as filas dos procedimentos demissionais e gastam o dinheiro da rescisão em cervejas artesanais à beira-mar. Até que, um a um, eles começam a emigrar para Portugal, financiados por generosas bolsas de estudo. J. permanece no Rio, sobrecarregada por uma crise tríplice: a demissão, o abandono do namorado e a ruína política e econômica do país. Manual da demissão se passa entre os últimos suspiros do governo Dilma Rousseff e a aparição de Michel Temer. “O livro partiu de uma experiência autobiográfica, mas logo se tornou um livro coletivo, por conta do momento em que vivemos”, disse Wähmann. “Comecei a ficar atenta para esses assuntos de emprego e demissão, conversar com amigos dispensados na mesma época que eu, por causa da crise ou não. E tentei fugir do óbvio, buscar elementos que pudessem dar uma leveza a um assunto tão espinhoso.”

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A crise também bota lenha em O fogo na floresta, o romance de Ferroni. Heloísa, a protagonista, é demitida porque sua empresa foi comprada por um grupo estrangeiro e passa por uma reestruturação. Ainda é 2013, o espectro da crise ronda o país, mas se confunde com o otimismo pré-Copa e pré-Olimpíada. Os personagens conversam sobre o aquecimento do mercado imobiliário carioca, mas o leitor sabe que aquilo não vai acabar bem. Assim como as escolhas pós-demissão de Heloísa não resultam em nada de bom. Ela não conta para ninguém que perdeu o emprego, diz que saiu porque quis, em busca de “novos desafios”. Entre um networking e outro, ela tenta abrir um negócio próprio, vira amante de um suspeitíssimo empreendedor paulistano e esgarça os limites de seu orçamento de desempregada. Heloísa pensa em si mesma como uma empresa – ironicamente, uma empresa tão mal administrada e confusa como aquela que a dispensou. “A ideia era fazer um romance sobre como construímos nossa vida ao redor do trabalho. Nós levamos nossas loucuras para o trabalho, mas a vida corporativa também nos enlouquece”, afirmou Ferroni a ÉPOCA. “O discurso corporativo impõe uma ditadura: nos diz como devemos nos comportar, falar, reagir, restringe toda possibilidade de pensamento.”

MANUAL DE DEMISSÃO Autores de romances sobre os efeitos da crise econômica, Julia Wähmann e Marcelo Ferroni dão dicas para lidar com o desemprego (Foto:  Montagem Época)

O diálogo entre os romances de Wähmann e Ferroni vai além da temática. Embora cada um deles opte por caminhos formais diferentes – Manual da demissão aposta na autoficção, O fogo na floresta se aproxima mais de uma narrativa realista –, ambos os romances recorrem à ironia para contar suas histórias sobre mulheres demitidas e um país afundado na crise. O discurso da narradora-personagem de Manual da demissão é fluido e pontuado com referências debochadas a clichês que recém-demitidos ouvem com frequência: “É a crise, você sabe”, “Quando uma porta se fecha, uma janela se abre”. Os capítulos são curtos e têm títulos inspirados no linguajar corporativo e naqueles ditados populares usados para consolar desesperados, como “Sonhar não custa nada”, “Vem pra Caixa você também” e “Quem não chora não mama”. “Eu gosto muito do escritor israelense Etgar Keret. Eu me lembro de quando ele esteve (em 2014) na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e disse que o humor é como uma luva de cozinha que nos permite tocar numa panela quente sem nos queimar. Eu quis que o meu livro fosse por aí”, disse Wähmann. O narrador realista de Ferroni reproduz o discurso um tanto vazio de executivos e funcionários, cheio de referências a “projetos” e volteios para esconder que as coisas vão mal.

AUTOFICÇÃO A escritora carioca Julia Wähmann, autora de Manual da demissão (Foto: Mauro Pinheiro Jr.)

Os dois romances provocam risos nervosos – a graça está nos infortúnios dos personagens. O seguro-desemprego de J. é cancelado e ela é abandonada pela maioria de seus camaradas demitidos, que vão para Lisboa. As interações sociais repletas de falsidade e os resultados desastrosos da ambição empreendedora de Heloísa também arrancam gargalhadas culpadas do leitor de O fogo na floresta. “Essa crise horrorosa que vivemos gera situações tragicômicas que eu tentei explorar no romance. Um livro sério seria muito monocórdio, pois a vida é um absurdo, cheia de situações trágicas que também são um pouco patéticas”, afirmou Ferroni. “Eu sempre tento colocar humor nos meus livros. Às vezes, a literatura brasileira é muito sisuda em sua tentativa de desenvolver personagens trágicos.”

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REALISMO O escritor paulistano Marcelo Ferroni, autor de O fogo na floresta (Foto: Chico Cerchiaro)
"A literatura pode tratar do sentimento de impotência que muitos hoje sentem por conta da crise”
Marcelo Ferroni, escritor e editor

Nos últimos anos, a literatura começou a incorporar a crise sem fim que assola o país. As Jornadas de Junho de 2013, por exemplo, têm aparecido cada vez mais na ficção brasileira recente. Um personagem de Meia-noite e vinte (Companhia das Letras), romance de Daniel Galera, participa de uma manifestação em Porto Alegre e termina a noite como um improvável black bloc. O protagonista de Gostar de ostras (Rocco), de Bernardo Ajzenberg, se une ao protesto que tomou as ruas de São Paulo na noite de 17 de junho de 2013. Em O marechal de costas (Alfaguara), José Luiz Passos discute as crises da República com referências às Jornadas de Junho, ao impeachment de Dilma e ao governo de Floriano Peixoto (1891-1894), o primeiro vice convertido em presidente. Ferroni se sentiu tentado a participar dos protestos. “Numa versão anterior de O fogo na floresta, o marido da Heloísa brigava com ela e ia jogar cocô na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) num protesto. Mas eu achei que estava muito over e cortei”, contou. Ferroni argumenta que a literatura pode abordar o sentimento de impotência e desconforto que muitos sentem hoje por causa da crise, aprisionados em empregos de que eles não gostam e ameaçados com o desemprego. “A literatura pode ajudar a compartilhar essa angústia”, disse. Num momento de Manual da demissão, J. começa a falar para os outros que está aproveitando o tempo desocupado para escrever um livro. Para ela, “talvez a literatura seja também ela uma resistência”.








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