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Josias de Souza

Dilma prometeu na posse tudo o que as ruas cobram a um ano e meio do final do governo

Josias de Souza

26/06/2013 06h45

As ruas do Brasil estariam em casa se Dilma Rousseff tivesse guiado seu governo pelo discurso da posse. Todas as reivindicações das passeatas constam do texto que a sucessora de Lula leu no Congresso em 1º de janeiro de 2011 —já lá se vão 2 anos, 5 meses e 26 dias. Como todo pronunciamento inaugural, o de Dilma exalou pompa. Mas tropeçou nas circunstâncias, indicam os manifestantes que ocupam o asfalto há duas semanas.

"É tarefa indeclinável e urgente uma reforma política com mudanças na legislação para fazer avançar nossa jovem democracia, fortalecer o sentido programático dos partidos e aperfeiçoar as instituições, restaurando valores e dando mais transparência ao conjunto da atividade pública", discursou Dilma. Foi uma das passagens mais aplaudidas pelos congressistas.

Teve-se a impressão de que os vícios do sistema político estavam com os dias contados. Dilma tinha do seu lado o frescor das urnas, a caneta cheia e uma coligação de aliados jamais vista. Sobreveio, porém, a surpresa. A presidente não voltaria mais a tratar do tema. Até que…

Saída do computador, a rapaziada desceu ao meio-fio sem intermediários. As passeatas começam no Facebook e terminam no asfalto. Nada de palanques. Nem sinal dos velhos carros de som. Decifrado o recado, Dilma tenta fazer por pressão o que não fez por opção. Ela agora tem pressa. Por isso, tropeça.

Durou menos de 24 horas a proposta da "Constituinte exclusiva" convocada por meio de plebiscito. Excetuando-se os ministros Paulo Bernardo (Comunicações), que deu a ideia, e Aloizio Mercadante (Educação), que a endossou, nenhuma voz abalizada apoiou a excentricidade.

Excluído da discussão prévia, coube ao vice-presidente Michel Temer, professor de Direito Constitucional, amarrar o guizo no pescoço da "presidenta". Ele informou que a coisa é inconstitucional. Além da má notícia, ofereceu um meio-termo: o plebiscito serviria para ouvir a sociedade sobre o tipo de reforma a ser aprovada. Fácil de falar. Difícil de fazer. Sobretudo porque Dilma quer ouvir o povo já em agosto. Ninguem disse a ela, talvez por pena. Mas é impossível.

A Dilma de janeiro de 2011 considerava "a estabilidade econômica como valor absoluto." Sabia que "já faz parte de nossa cultura recente a convicção de que a inflação desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador." Prometia: "Não permitiremos, sob nenhuma hipótese, que esta praga volte a corroer nosso tecido econômico e a castigar as famílias mais pobres."

Há três dias, reunida com governadores e prefeitos para lhes propor a adesão a "cinco pactos",  Dilma listou como primeiro tópico: "Garantir a estabilidade da economia e o controle da inflação." Foi como se reivindicasse o direito a um recomeço. "Da capo", como dizem os maestros aos músicos quando a harmonia desanda e é necessário reiniciar a peça da primeira nota da partitura.

A Dilma da posse não virava a cara para a Fifa. "Os investimentos previstos para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas serão concebidos de maneira a dar ganhos permanentes de qualidade de vida, em todas as regiões envolvidas", ela dizia, com desassombro. Noutros trechos, parecia adivinhar que a turba trocaria o circo pela exigência de escolas e hospitais "padrão Fifa".

"Junto com a erradicação da miséria, será prioridade do meu governo a luta pela qualidade da educação, da saúde e da segurança", inflamava-se a presidente da posse. "É tarefa indispensável uma ação renovada, efetiva e integrada dos governos federal, estaduais e municipais, em particular nas áreas da saúde, da educação e da segurança, vontade expressa das famílias brasileiras", acrescentava.

Nessa fase em que Dilma achava que Dilma seria uma gestora impecável, as salas de aula eram apresentadas como futuras sucursais do paraíso: "Só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso com a educação das crianças e jovens." A criançada não perdia por esperar: "Vamos ajudar decididamente os municípios a ampliar a oferta de creches e de pré-escolas."

Também os hospitais estavam envoltos nessa atmosfera de Éden: "Consolidar o Sistema Único de Saúde será outra grande prioridade do meu governo", dizia a Dilma das primeiras horas. "Vou acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo brasileiro", ela prometia. "Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo."

A clientela era como que convidada a saltar o crepúsculo e, sem demora, entrar no porvir: "O SUS deve ter como meta a solução real do problema que atinge a pessoa que o procura, com uso de todos os instrumentos de diagnóstico e tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de fortalecer as políticas de prevenção e promoção da saúde."

A Dilma dessa época não falava em importar médicos do estrangeiro. Achava que poderia se virar com mão de obra doméstica: "A formação e a presença de profissionais de saúde adequadamente distribuídos em todas as regiões do país será outra meta essencial ao bom funcionamento do sistema."

Hoje, Dilma é presidente de 39 ministros. Na posse, dizia que faria "um trabalho permanente e continuado para melhorar a qualidade do gasto público." Sob suas asas, malfeitor não se criaria: "Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente."

No primeiro ano, Dilma cuidou da "faxina". Premida pelo noticiário, livrou-se de sete ministros. Depois, dedicou-se a restituir ministérios às legendas que os sujaram. Agora, fala em tornar crime hediondo a "corrupção dolosa", como se houvesse o roubo sem dolo.

"As ruas estão nos dizendo que o país quer serviços públicos de qualidade", disse a presidente aos governadores e prefeitos há três dias. A Dilma da posse dava a entender que tudo isso já estava assegurado. Ninguém precisaria armar-se de vinagre e enfrentar a polícia: "No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população."

A Dilma dos dias que correm queixa-se da sorte: "Eu mesma tenho enfrentado, desde que assumi a Presidência, inúmeras barreiras". A Dilma da posse era 100% confiança: "Em um país com a complexidade do nosso, é preciso sempre querer mais, descobrir mais, inovar nos caminhos e buscar novas soluções." Ela antevia "um país de classe média sólida e empreendedora."

No mundo virtual do discurso de posse, Dilma imaginava-se presidente de um Brasil prestes a tornar radicalmente outro. "Muita coisa melhorou em nosso país, mas estamos vivendo apenas o início de uma nova era. O despertar de um novo Brasil." Suprema ironia: um dos slogans da garotada que enche as ruas é justamente "O Gigante Acordou".

Serviço: Aqui, a íntegra do discurso de posse de Dilma Rousseff.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.