• A. J. Oliveira
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 (Foto: Ilustração: Leonardo Yorka)

(Ilustração: Leonardo Yorka)

Era época de Natal na Eslovênia, em 2015, quando um grupo de cientistas corria contra o tempo para concluir a análise dos tecidos do cérebro de um feto abortado. Os pesquisadores da Universidade de Liubliana também sequenciaram a placenta da gestante, uma eslovena que esteve no Brasil meses antes e apresentara sinais de zika. No final daquele ano, quando voltou para casa e descobriu que seu feto tinha malformações no cérebro, optou pelo aborto. O trabalho incansável valeu a pena: os médicos foram o primeiro grupo a apresentar evidências da relação entre o vírus e a microcefalia. Tanta gente fazia aquele mesmo estudo que, se eles tivessem demorado alguns minutos, teriam sido ultrapassados.

“Usamos essa história para ilustrar como o campo científico também está mudando, como tantas pessoas estão trabalhando com ciência e quão velozes as descobertas científicas se tornaram”, aponta o biólogo molecular Klemen Zupancic, CEO do SciNote, um dos maiores cadernos de laboratório eletrônico do mundo. A plataforma organiza dados e resultados. “É importante ter ferramentas que ajudem não somente a fazer a pesquisa mas também a publicá-la.” Afinal, de nada adianta conduzir um experimento e não contar os resultados a ninguém: a ciência só avança quando o conhecimento é compartilhado. O problema é que, para muitos pesquisadores, a empolgação se perde com a etapa enfadonha que vem depois da pesquisa em si.

Resumir meses ou anos de investigação em um artigo técnico, padronizado por 1 milhão de regras chatas, porém importantes, pode ser uma tarefa ingrata. Talvez até um pesadelo, levando em conta a pressão das instituições de pesquisa para que se publique muito e o crescente volume de dados com os quais os cientistas modernos têm de lidar — o tal do big data. Mas nem tudo está perdido: os robôs vieram para ajudar.

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“Escrever um artigo científico é difícil, entediante”, conta Zupancic. O SciNote é a primeira plataforma a implementar inteligência artificial (IA) para ajudar na redação de manuscritos, lançada no fim de 2017. “Vemos muita gente empolgada com nosso sistema, que faz o rearranjo dos dados no formato certo”, diz. Até agora, o recurso de IA, chamado Manuscript Writer, já atraiu mais de 800 usuários, que geraram mais de 200 rascunhos de papers — indício de que os cientistas estão animados com a novidade. Um deles é o biólogo alemão David Frommholz, mestre em Ciências Biomédicas pela Universidade Hochschule Bonn-Rhein-Sieg, no oeste da Alemanha. “Em geral, diria que o pesquisador não gosta muito de escrever publicações”, confessa. “Queremos publicar, mas escrever é quase uma obrigação.”

Frommholz pôde testar o Manuscript Writer antes do lançamento, e usou-o para produzir um artigo sobre um novo receptor de citocina, grupo de proteínas que ajudam a organizar as respostas do sistema imunológico. Ele ficou surpreso com o resultado. “Ao colocar todos os dados organizadamente na plataforma, obtém-se um rascunho muito bom”, diz. Para ele, poder contar com uma ferramenta dessas torna o processo de publicação mais ágil e eficiente: com um só clique, todos os resultados do estudo são ordenados no manuscrito. Um trabalho mecânico que levaria até duas semanas é concluído em poucas horas. Depois, é só refinar o texto e preencher os campos mais “criativos”, com que a inteligência artificial ainda não dá conta de lidar. “Tenho mais tempo para o que realmente importa, que é a minha pesquisa.”

CADERNO NA NUVEM
Mais de 25 mil usuários de cem países diferentes utilizam o SciNote. O Brasil está entre as dez nações que mais empregam o sistema, com cerca de 500 cadastros. No final do ano passado, a USP anunciou medidas para disseminar boas práticas de pesquisa e, assim, reduzir episódios de plágios e fraudes. Uma delas foi a apresentação do SciNote a toda a comunidade acadêmica. “É uma mudança cultural, e os próprios pesquisadores têm de notar as vantagens”, diz José Eduardo Krieger, pró-reitor de pesquisa da USP.

Entre os ganhos, Krieger menciona a transição da pesquisa do analógico para o digital, padronização de condutas e maior facilidade de acesso aos resultados. Com essas ferramentas, os cientistas podem fazer home office. “Esses cadernos são documentos, se retirados do laboratório podem ser perdidos ou danificados”, explica. “As ferramentas eletrônicas permitem acesso à distância, mas só de pessoas autorizadas.”

O SciNote também facilita o ato de tornar públicos os dados. Assim, a construção do conhecimento científico ganha mais transparência. Cada vez mais, os pesquisadores querem acesso não apenas a artigos prontos mas também aos passos dos colegas ao longo do caminho — muitas vezes para reproduzi-los e checar se são confiáveis. “Queremos tornar a ciência mais verificável, ajudar com a reprodutibilidade”, diz Zupancic, que se interessou por tecnologia em 2010. Naquela época, o biólogo juntou seus colegas com a turma de TI na tentativa de estabelecer pontes entre os dois campos e desenvolver softwares mais amigáveis para os cientistas. Deu certo.

Mas o lançamento do Manuscript Writer levanta uma questão: pode a inteligência artificial se tornar tão sofisticada a ponto de substituir de vez os pesquisadores? Não exatamente. “Ela é péssima em ser criativa”, sentencia Zupancic. Claro que um artigo científico não é nenhuma obra literária — o estilo de linguagem importa pouco. Mas há coisas que só nosso cérebro faz, como criar títulos, interpretar hipóteses e discutir implicações do estudo. Não há motivo para pânico.

 (Foto: Ilustração: Ana Matsusaki)

(Ilustração: Ana Matsusaki)

Superpop
Criado em 2012, SciNote atrai cada vez mais pesquisadores

 (Foto: Ilustração: Ana Matsusaki)

(Ilustração: Ana Matsusaki)

 (Foto: Ilustração: Ana Matsusaki)

(Ilustração: Ana Matsusaki)

500 brasileiros
Estamos entre as dez nacionalidades que mais utilizam a plataforma

Fonte: SciNote